Japão ameaça deixar o pacifismo, 70 anos depois

Memorial da Paz em Hiroshima

Hibakusha é a palavra em japonês usada para nomear os sobreviventes das bombas de Hiroshima e Nagasaki, cujo 70º aniversário acontece este mês — assim como a rendição japonesa e o fim da Segunda Guerra Mundial. Significa “pessoa bombardeada” e calcula-se que atualmente existam 193 mil delas no país. Trata-se de um grupo muito especial, vítimas de cicatrizes e suposta radiação, e com forte autoridade moral.

E nos últimos dias um grupo deles chamou atenção ao se unir aos imensos protestos contra a decisão do primeiro-ministro Shinzo Abe de rever uma interpretação constitucional, apoiada pelos EUA, para devolver ao Japão a capacidade de intervir em conflitos bélicos. O político conservador, que sempre foi relutante em aceitar as atrocidades cometidas pelo Japão no passado, conseguiu que seu Conselho de Ministros aprovasse uma interpretação da Constituição redigida pelos EUA pouco depois da rendição. Até agora, o artigo 9 da Constituição japonesa impedia o país de recorrer ao uso da força em conflitos internacionais.

Uma vez que a Câmara Alta aprove definitivamente a nova lei, o Japão poderá defender aliados como os EUA, caso sejam vítimas de um ataque armado, bem como participar em operações de segurança das Nações Unidas. Tóquio poderia aprovar mais facilmente o envio de suas Forças de Autodefesa para áreas de conflito e ainda ampliar o apoio logístico às missões de paz no exterior

Mas, para os hibakushas, assim como para 73% da população, de acordo com uma pesquisa recente, a interpretação é muito vaga para justificar qualquer aventura militar no futuro. E seria a negação da essência do Japão moderno e pacifista que se dedicou a seu desenvolvimento e enterrou a vergonhosa historia de invasões e crimes de guerra cometidos até a Segunda Guerra Mundial.

Durante as massivas manifestações de 15 dias atrás, o grito era “Hibakushas nunca mais, não mais Hiroshimas, não mais Nagasakis!”, segundo as agências de notícias. E é o que os hibakushas têm a dizer sobre o tema, que sempre será importante para a sociedade japonesa.

Em 1989, a Associação Nacional de Hibakushas publicou uma série de quatro livros com depoimentos dos sobreviventes e desde então a obra se transformou em uma das lembranças mais dolorosas do que aconteceu nos dias em que as bombas caíram. Cada história tem um padrão macabro em comum: a liquidação de Hiroshima e Nagasaki, a angústia, a doença e o estigma nas décadas seguintes. Uma mulher anônima de Nagasaki, que tinha 19 anos quando a bomba caiu, descreve um vizinho, que deveria estar preparando o almoço. “Eu vi seu esqueleto de pé. Eu vi pessoas queimando os corpos dos mortos. Aqueles ossos brancos como marfim espalhados aqui e ali”, conta a testemunha.

Em agosto do ano passado, em uma cerimônia comemorativa pelos 69 anos de lançamento da bomba, a hibakusha Nagasali Miyako Jodai criticou o governo de Abe pelo seu interesse no poder atômico e sua agenda de segurança, que ela chamou de “uma afronta à Constituição pacifista do Japão”. Hiroshi Shimizu, secretário-geral de Hiroshima Hidanko, organização de hibakushas, faz eco deste sentimento:

— Nossa época se transformou em uma época muito perigosa. A atmosfera no Japão agora nos faz lembrar os 10 anos de silêncio após a guerra, quando uma lei secreta de Estado ocultava os registros e até a existência dos hibakushas”.

De acordo com o primeiro-ministro, a diplomacia dos EUA e até mesmo alguns meios de comunicação influentes, como o “Financial Times” (adquirido recentemente pelo grupo japonês Nikkei), a decisão é justificada pela mudança geopolítica na região. Agora, dizem eles, a presença expansionista da China e a sempre ameaçadora postura nuclear da Coreia do Norte fazem necessário que o Japão possa ter certa capacidade de dissuasão.

Em um editorial publicado na sexta-feira, o “Financial Times” sustenta que “as mudanças são justificáveis. O crescimento de uma China militarmente mais musculosa altera a paisagem de segurança do Japão”. A ideia, de cara, não agradou a China.


— Solenemente pedimos ao lado japonês que assuma as duras lições da historia, que se agarrem ao caminho do desenvolvimento pacífico, respeitem as principais preocupações de seus vizinhos asiáticos e não comprometam a soberania da China e os interesses de segurança regional danificando a paz e a estabilidade — disse Hua Chunying, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, de acordo com uma reportagem do “New York Times”.

Para a maioria dos japoneses, segundo as pesquisas recentes, a decisão é uma traição às vítimas das bombas e ao pacifismo do Japão. E é por isso que se espera que este aniversário seja um dia triste para os hibakushas.


Fonte: O Globo



Comentários

  1. Acredito que a paz deve ser cultuada, em todos os recantos da humanidade! O passado jamais deverá servir de ponto de apoio, para alavancar qualquer passo para a indústria bélica ou psicológica a qualquer povo que seja! Um erro jamais justificará outro!

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