'No Japão, terra dos meus pais, descobri que sou 100% brasileiro'
Fitas coloridas de papel vão se
rompendo à medida que o navio Kasato Maru se distancia do porto de Kobe. A
bordo, 781 pessoas, de 151 famílias, choram e acenam com lenços aos que ficam.
Partiam com o coração cheio de incertezas e de temores. Mas a vontade de vencer
era, com certeza, muito maior.
O destino final: porto de Santos, no
litoral de São Paulo. Começava ali, no dia 28 de abril de 1908, a primeira de
uma série de viagens que levaria os imigrantes japoneses para o Brasil.
Depois de quase oitenta anos, foi a
vez dos brasileiros fazerem o caminho inverso.
O repórter da BBC, Ewerton Tobace, relata suas passagens como filho de imigrantes no Brasil e o outro lado, de brasileiro no Japão.
Saíram do Brasil em direção à
"terra do sol nascente" com o mesmo espírito dos antepassados que um
dia cruzaram os mares. Queriam vencer, de alguma forma, no exterior.
O movimento ficou conhecido como
decasségui (出稼ぎ, dekasegi), cuja
palavra significa, literalmente, sair de sua terra para trabalhar em outro
lugar.
Hoje, pesquisadores tendem a torcer
o nariz para a palavra, pois ela ficou impregnada de conotações negativas e discriminatórias,
muito ligada ao trabalho não qualificado.
A BBC Brasil publica, ao longo desta
semana, uma série especial de reportagens contando a trajetória de vários
decasséguis, para marcar os 25 anos da chegada deles ao Japão.
Eu cheguei ao Japão para trabalhar
como jornalista em um periódico que circulava na comunidade.
Já tinha ido ao país outras duas
vezes, apenas para rever a família que morava por lá havia algum tempo. Mas, na
terceira vez, a mala foi feita para uma longa estada – já se foram 14 anos.
Fui por dois principais motivos:
para ficar perto da família e entender melhor as minhas raízes. Queria ver de
perto aquela terra que meus avós tanto comentavam e sonhavam poder rever um
dia.
Meu avô, Torazo Tobace, chegou com a
família em 1955 ao Rio de Janeiro e, de lá, eles foram para o interior de São
Paulo. O restante dos irmãos e os pais dele haviam imigrado bem antes da
Segunda Guerra Mundial.
O mais interessante na minha jornada
ao Japão foi descobrir minha verdadeira identidade.
No Brasil, é muito comum sermos
chamados de japonês e haver uma "pressão" da sociedade para nos
comportarmos como um verdadeiro nipônico.
Mas no país dos meus pais fui
descobrir que sou mesmo 100% brasileiro, pelo meu jeito de pensar, de agir e,
claro, pelo meu idioma materno.
Pesado,
sujo e perigoso
Oficialmente, o movimento de retorno teve início em junho de 1990, com a mudança na legislação de imigração japonesa.
A partir daquele ano, os
descendentes nipônicos ganharam o direito a um visto temporário de longa
estada, que permitiu a atividade econômica no país.
Estes pioneiros carregavam na
bagagem, além de roupas e mantimentos – enlatados, café, feijão e embutidos
para não sentirem saudades da comida brasileira –, muita esperança.
Não se importavam com o emprego,
desde que ganhassem bem. Afinal, o objetivo da maioria naquela época era juntar
uma boa poupança e, no máximo em três anos, voltar ao Brasil.
Desempenhavam funções caracterizadas
pelos japoneses como três "k" – kitsui (pesado), kitanai (sujo) e
kiken (perigoso). Posteriormente, os próprios brasileiros incluíram mais dois
adjetivos: kibishi (rígido) e kirai (desagradável).
Passados 25 anos, o cenário mudou
bastante. Agora, os brasileiros que chegam ao país não levam mais mantimentos
nas malas. Com o crescimento da comunidade, surgiram as lojas de produtos brasileiros,
que suprem todas as necessidades.
Talvez a principal característica em
comum seja a vontade de voltar, um dia, ao Brasil. Porém, o retorno é sempre
adiado, e estes imigrantes acabam se tornando permanentemente temporários no
Japão.
Mas há também uma grande parcela que
toma passos concretos para ficar em definitivo no país, como comprar casa
própria, buscar o visto permanente ou mesmo a naturalização japonesa.
Para os que continuam a fazer a
ponte aérea Brasil-Japão, o principal motivo é o econômico, mas há aqueles que
já não conseguem mais se readaptar ao país natal.
Adaptação
ao país
Confesso que a cultura japonesa não é tão fácil de se assimilar e, mais ainda, de se acostumar. É preciso ter muita paciência para entender tantas regras sociais.
Principalmente quando se tem
aparência física de japonês mas atitude de brasileiro, que é o meu caso e o da
maioria dos conterrâneos.
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Foto de crianças a bordo do navio que levou leva de imigrantes japoneses ao Brasil, após a Segunda Guerra Mundial (Foto: Arquivo Pessoal) |
Tanto que, no começo, os problemas
decorrentes da chegada dos brasileiros ao Japão se resumiam basicamente a
atitudes que demonstravam claramente a falta de conhecimento da cultura e dos
hábitos locais.
Hoje, estas questões ainda provocam
calorosas brigas entre vizinhos, mas os principais problemas são outros.
Educação, violência e previdência estão entre os temas mais discutidos nos
últimos anos.
Afinal, qual será o futuro das
crianças chamadas pelos pesquisadores de "duplamente limitadas" ou
"semilíngues", ou seja, que não possuem domínio em nenhum dos idiomas
(japonês ou português)?
Ou então das que estudam em escola
brasileira, com a esperança de voltar ao Brasil para continuar os estudos, e
acabam permanecendo no Japão? E aquelas que são educadas como japonesas e
crescem em meio a conflitos de identidade?
E mais: o que fazer para conter o
alto índice de violência na comunidade? E os adultos, que estão envelhecendo e
não têm nenhum plano de aposentadoria lá ou no Brasil?
Os governos dos dois países batalham
para resolver os problemas. A embaixada do Brasil em Tóquio possui inclusive
uma seção, chamada Comunidade, inexistente em outras representações brasileiras
no mundo.
O diplomata que assume o cargo tem
como tarefa principal discutir, na esfera política, assuntos ligados à
comunidade brasileira que vive no arquipélago.
Em 2010, por exemplo, após anos de
negociação, os dois países assinaram um acordo previdenciário.
Fonte: BBC Brasil - Ewerton Tobace
Fotos: arquivo pessoal
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